Ainda bem que existiu um Café Kahlua na minha vida.


Estava eu no meio de uma produção em plena tarde de uma quarta. Já havia recebido o mapa de luz do Elizer (iluminador), ia passar no teatro Marília e depois tinha que fazer uma série de tarefas que não me lembro mais. Quando dei por mim, estava passando na porta do Café Kahlua. Entrei. Sentei num daqueles sofás lá do fundo e pela primeira vez reparei naquele lugar. Já havia passado por lá uma outra vez. Mas foi pra fazer um lanche rápido junto com a Lorelei (minha ex-namorada e atriz) e voltar para o ensaio de "Ver ou não Ver" que acontecia no AMI. Naquela noite o Octaviano (diretor da peça) apareceu também, falamos alguma coisa das cenas e voltamos apressados para o ensaio. Ou seja: De corpo, mente e sentidos presentes, aquela era a primeira vez que eu estava no Café Kahlua.

Diante daquele cardápio de cafés mirabolantes com misturas exóticas, fiz o pedido de um café simples e um pão de queijo comum. Afinal eu tinha mil coisas pra fazer. Peguei uma matéria do Estadão pra ler e quando levanto a cabeça já vejo um músico afinando um violino em uma mesa, marionetes saindo de uma mala em outra mesa e as pessoas conversando como se estivessem em outro tempo e espaço. Fiquei me perguntando se não estava acontecendo algum festival na cidade. Mas não era nada. Passei um tempo observando aquele ritmo diferente como se ali fosse um pedacinho deslocado do mundo. E era! O violino começou a tocar, as marionetes ganhavam vida e algum sentimento bem agradável tomava conta de mim.

Só sei que eu fiquei naquele estabelecimento por um tempo infinitamente maior do que eu tinha programado e ouvi exatamente isso quando fui pagar a conta: “Então o seu pedido foi um café simples mas com os grãos tratados pelas belas e macias mãos das deusas do Olímpio e um pão de queijo comum mas sem deixar de ser estupendo e divino? Isso tudo por apenas tanto”. (Eu realamente ouvi isso quando fui pagar a conta!) Soltei uma gargalhada e paguei um valor que seria o mesmo da padaria da esquina. A vantagem é que ali eu acredito que foram grãos tratados por deusas e pão de queijo divino.

Sai de lá com a sensação que eu ficaria um bom tempo naquele ritmo lúdico, e por coincidência ou não, ainda pertinho do Kahlua, eu comecei a encontrar pessoas com grandes significados para minha vida. Meu amigo e saudoso Jarbas Medeiros. Poeta, filósofo, meu Mestre e cientista político. Falamos, como sempre, de assuntos diversos com um típico tom de brincadeira. Depois do Jarbas veio Wilmar Silva. Um artista das palavras. Um amigo que me convidou para ser o seu alter ego e rosnar as suas dezenas de poesias num especial de tv. Depois veio Wilma Henriques. Uma talentosa e veterana atriz por quem eu tenho uma total admiração. Jota D´Angelo. Diretor veterano que me disse palavras incentivadoras e inesquecíveis quando leu Bordel de Véu (meu primeiro texto montado).

Quando eu dei por mim, as horas tinham passado. Tive que adiar meus meus afazeres, mas percebi que tinha esquecido de um detalhe: Muitas vezes o ritmo da arte é outro. É um ritmo que nos cobra o olhar curioso. Um paladar sem pressa mas que pode queimar a língua. Um toque que faz sentir a temperatura das coisas e das pessoas. Um ouvir onírico pra fazer realidade fundir com sonhos. A persistência de buscar, buscar e buscar um silêncio que fala. Um encontro sem final. E isso é peleja! É bom, principalmente, quando cai suor da testa. Não dá pra ser um operário da arte sem colher a sua matéria prima que é a essência. Que é a alma.